Ómi fazendo homice
Carta aberta aos homens cis héteros que provavelmente não vão ler, porque afinal "nem todo homem, mas sempre um homem"
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Não preciso nem procurar muito pra saber que a maioria das pessoas que me seguem ou assinam a newsletter são mulheres. Grande parte do meu círculo pessoal são de mulheres, seguida por homens que também saem com homens e depois três héteros sendo um deles meu irmão.
Essa carta aberta vai chover um pouco no mesmo lugar que várias mulheres já vem falando e que vira e mexe é uma grande pauta nas conversas com minhas amigas: o quanto a gente têm avançado nas grandes capitais sobre a posição da mulher na sociedade, mas como isso ainda é um abismo gigante! Outro dia uma delas comentou sobre a expressão francesa Flâneur que tem esse foco masculino e fala sobre poder andar com essa liberdade de só poder existir ali naquele espaço, mas como isso realmente não consegue ter uma articulação pro feminino simplesmente porque as mulheres não tem essa liberdade de simplesmente flanar pela cidade sabe?
No discurso “eu sou o monstro que vos fala” o Paul Preciado relata como foi sair na rua depois de começar a tomar a testosterona e se portar como um homem. Da diferença de poder andar de cabeça alta encarando as pessoas no rosto sem aquele medo ou receio que sempre levamos à tiracolo.
Quando eu descobri ali em junho desse ano minha endometriose eu senti uma raiva conforme ia lendo mais sobre e as recomendações de tratamentos paliativos que falavam de “redução de stress”, “alimentação regrada”, “exercícios físicos” enquanto eu sentia aqui dores que eu precisava sentar no chão de tanto que minha perna estava fraca e não encontrava artigos melhores sobre, trabalhando em hospital e participando de reuniões que os homens falavam de estudos pro robô como ferramenta em cirurgias super complexas e específicas… mas cadê um estudo pra melhorar essa doença que muitas muitas mulheres têm?
Ah, é mesmo. Só pessoas com ovários que têm e o diagnóstico é baixíssimo porque também não temos ampla divulgação.
Já tem mais de quatro anos que estudo com mais foco o dito “papel” da mulher na sociedade e como isso foi de desenhando ao longo desses muitos anos. Vira e mexe preciso dar umas paradas nesse estudos porque aparece alguma coisa ali na pesquisa que toca em algum lugar dolorido, dai volto a ser só uma estudante de psicologia que mergulha na cabeça humana tentado esquecer que o corpo está ali.
Mas bem, esse corpo é o que me trouxe até aqui e que não consigo fazer de conta que não existe, já que toda minha existência seria diferente se eu tivesse um corpo de homem (cis, pra facilitar o recorte de uma forma mais simples).
Se esse fosse outro corpo primeiro que eu não estaria escrevendo um texto desses, imagina que ia precisar questionar minha própria existência? Poderia correr nos parques com o fone de cancelamento de ruído sem camisa tranquilamente, será que ia me ligar que aqueles dois pontos no meu peitoral são mamilos também? Não iria me trocar pra colocar um camisetão que não marca o corpo pra ir pra academia, talvez até colocaria uma camiseta ainda mais justa pra verem que estou malhando com essa frequência toda. Iria escrever mais textos com a segurança de que se li alguns artigos posso me dizer um porta voz disso, sem precisar colocar ali o contexto de quatro anos de estudo. Talvez com quatro anos de estudo já até estaria comentando e corrigindo textos de mulheres falando sobre incômodos com relacionamentos explicando que a libido do homem é maior mesmo historicamente, que por isso que precisam sempre olhar as outras que estão por aí, imagina que absurdo esse discurso aí das feministas que se a mulher não tivesse esse tanto de carga mental teria até mais libido que o homem! Poderia até mesmo falar que deviam se cuidar mais por estarem ficando desleixadas (lembram do Rodriguinho reclamando do corpo da Yasmin Brunet no BBB?). Ou até mesmo dizer que sou o Ryan Goslin moreno mesmo com 1,70 de altura (Sério! Autoestima delirante é um fato real).
Gente a lista é tão grande e com tantas mas tantas camadas de absurdo que até escrevendo aqui fico na dúvida se sinto mais raiva ou dou risada dessa distopia que vivemos sabe?
Custa muito parar dois segundos pra pensar antes de sair fazendo esse monte de canalhice e tentar parar pra ouvir sem querer dar opinião, só ouvir e tentar absorver mesmo sabendo que aquilo é um terreno desconhecido e que pode mudar essa posição de privilégio? Não adianta também dar uma de Fiuk com o desculpa ser homem só pra pagar de bonitinho, acaba sendo ainda pior.
Em King Kong Fran ela usa um microfone que é um pau gigante, em determinado momento diz como ter um daquele tamanho aumenta a voz dela sabe?
Outro filme que eu acho incrível é Eu não sou um homem fácil que mostra aquele clichê do mundo trocado que as mulheres tem esses comportamentos e os homens fazem até marchas pra pedir respeito.
E posso falar num bem sincera e do fundo do coração? Também não acho que é a solução esses homens passarem por isso tudo, Tata bem lembrou que Paulo Freire já falava em Pedagogia do Oprimido de uma forma de libertação onde a gente não reproduza o ciclo de opressão. A beleza é de justamente trazer essa libertação de forma consciente pra criação de uma sociedade mais justa e igualitária.
Olhando no geral parece ainda utópico, mas tenho uma ponta de esperança muito aqui da minha bolha paulistana e soteropolitana que a gente já tem essas conversas muito mais claras, que no meu trabalho hoje em sistema hospitalar dentro da área de TI, conhecido majoritariamente por ser um ambiente masculino, tenho um tanto de trocas com lideranças femininas e inclusive meu time trazendo essa surpresa por ter uma liderança direta quando assumi a área em 2023.
Por essas que mesmo nessa realidade que parece até distópico quando paramos pra pensar um tanto, ainda sou muito mais viver nesse corpo de mulher que finalmente começou a ser mais estudado pela medicina do que no de um homem que pode estar tão ou até mais complicado do que aqui quando falamos de como se encontrar nessa sociedade.
Já viram o documentário Silêncio dos Homens do Papo de Homem? Tem cinco anos mas já traz tantas coisas de uma forma tão clara sob esse ponto de vista deles.
E Pri Glenda resume demais esse texto todo com o vozeirão incrível dela cantando Poder em uma apresentação de Dois ô um:
Última mas não menos importante que essa edição não teria a coragem de sair no mundo de forma pública assim se não fosse por todos os anos de terapia e uma cutucada certeira da
nas sessões individuais que fizemos em outubro com a liberação de tantos furacões lascivos - inclusive na última lendo a primeira versão desse texto pra ela!
É bem difícil ter esse tipo de conversa com homens heteros. Até os ditos mais desconstruídos tem um momento que vc capta um tédio deles quando estão ouvindo a gente falar. É muito cansativo!
Um beijo